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sábado, 27 de outubro de 2012

Normalização II: O Equilíbrio Natural da Criança

"Para aqueles que compreendem a vida, isto
pareceria sem dúvida muito mais verdadeiro."
(Antoine de Saint-Exupéry em O Pequeno Príncipe)

   Para os admiradores de Montessori, especialmente no início de suas realizações, o processo de recuperação do equilíbrio natural da criança que acontecia nas Casas dei Bambini era comparado a um milagre e uma conversão religiosa. Os efeitos da liberdade em um ambiente preparado conseguidos pela pedagogia científica da médica italiana a levaram a ocupar longos artigos, diversas entrevistas e belas fotografias em jornais de todo o mundo. Ainda assim, no entanto, poucas pessoas compreenderam bem como Montessori o que realmente estava acontecendo: surgia, diante dos olhos de todo o mundo, o equilíbrio natural da criança. "Eu aponto para as crianças", Montessori dizia, "e as pessoas olham para meu dedo".

   As crianças para quem ela apontava eram especialmente silenciosas, gostavam muito de trabalhar com os materiais didáticos e eram extremamente organizadas. Falava-se, na sala, mas baixinho, e ria-se na sala, mas com mais frequência havia sorrisos. As crianças mais novas às vezes esqueciam de guardar o que haviam utilizado, mas as mais velhas sempre lembravam, e tudo isso mantinha o clima da sala atrativo para todos os visitantes. Montessori, no entanto, reafirmava: esta é a natureza da criança. Elas são assim. Em um ambiente preparado onde sejam deixadas em liberdade, elas são naturalmente assim. O processo pelo qual elas estão passando se chama normalização, e elas são crianças normalizadas.

   Devido a dezenas de traduções e mudanças de significado da palavra normal, a ideia de normalização é sempre mal compreendida e parece aos leitores e estudantes de Montessori, assim como aos pais, que se trata de algo que o professor faz com o aluno. Na verdade, é algo que a criança faz a si mesma. Por isso,  depois de uma extensa conversa com a Profª Edimara de Lima, diretora da PRIMA - Escola Montessori de São Paulo, que tive há vários meses e sobre a qual fiquei pensando desde então, decidi adotar, no Lar Montessori, o termo "Equilíbrio Natural da Criança" para tratar do que Montessori e seus contemporâneos chamavam de criança normalizada.

   E.M. Standing (autor de "Maria Montessori: Her Life and Work"), amigo pessoal de Montessori e grande estudioso de seu método, conseguiu estabelecer uma lista de características mais comuns às crianças naturalmente equilibradas. As marcas que ele encontrou foram as seguintes:

  •  Amor à ordem;

   A criança pequena precisa de um ambiente organizado. Nos primeiros meses ela não poderá organizar nada, então, quando desorganizar algo, procure restabelecer tudo. Isso realmente faz bem, agrada e tranquiliza a criança. Quando ela for mais velha, a partir dos dois ou três anos, é bom começar a ensinar a guardar as coisas. Colocar no lugar depois de usar. Para isso, mantenha tudo o que a criança usar em uma altura que ela possa alcançar. Como as crianças gostam de ordem, guardar as coisas será algo que farão com tranquilidade. Até os seis anos, pode ser necessário lembrá-las com bastante frequência, e ajudar umas três vezes ao dia. Aos poucos, a criança aprende a guardar o que usa, e faz isso com eficiência!
  •  Amor ao trabalho;
   Assim como o amor à ordem e todas as outras características, esta é inata. No entanto, no caso do amor ao trabalho, não precisamos incentivar a criança a trabalhar. Ela faz isso com o que quer que encontre em seu caminho, naturalmente. Nosso papel aqui é orientar este trabalho de forma que ele seja mais produtivo para a formação interna do ser em desenvolvimento. Ensinar as atividades passo-a-passo, devagar e objetivamente é uma maneira de engajar a criança em atividades interessantes e garantir que ela possa fazer as coisas sozinha da próxima vez. A outra forma, tão importante quanto, é dar atividades para as quais a criança esteja preparada - assim, garantimos a possibilidade de sucesso e, ao contrário do que pensamos, a criança aprende com o acerto, e não com o erro.

  •  Concentração espontânea;
   Quando a criança é muito pequena, é comum que mantenha os olhos em um ponto fixo. Mais tarde, a vemos tentando pegar coisas com muita força de vontade. Depois, em um ambiente preparado, a vemos se esforçando por montar peças, empilhar coisas, encaixar pedaços, decifrar enigmas. A concentração espontânea é, além de uma das características mais belas, uma das que mais devem ser respeitadas. A concentração só pode ser espontânea. Dizer "preste atenção" ou "pare de fazer o que está fazendo e venha comigo" são duas formas de interromper o fluxo de concentração, e não de inciá-lo. A atividade produtiva livre é a única forma de permitir que a criança desenvolva mais esta característica natural.

  •  Apreensão da realidade;
   Isso é o que a criança está tentando fazer desde o momento em que abriu os olhos ou os ouvidos para seu ambiente. Desde a primeira vez em que sentiu o ar entrar pelas narinas ou moveu os braços e os dedos, a criança tenta compreender e internalizar a realidade que a cerca. Nossa tarefa, como pais, mães e professores, é garantir que ela consiga fazer isso. Por meio de um ambiente preparado para ela, no qual ela possa olhar coisas bonitas e interessantes, pegar e sentir todo tipo de objetos e ouvir os sons do mundo, nós oferecemos para a criança todas as possibilidades de apreensão da realidade, para que ela use à sua maneira e no seu ritmo. Assim, permitimos que ela aprenda sozinha e obedeça sua tendência normal de desenvolvimento.

  •  Amor ao silêncio e ao trabalho solitário;
   Parece um pouco assustador, à primeira vista, que uma das características da criança seja querer ficar quieta e trabalhar sozinha durante alguns períodos, às vezes bem longos, de seu dia. Na verdade, no entanto, encontramos esta mesma característica naqueles que se esforçam pelo bem da humanidade: nos cientistas e nos monges. Desligar a televisão, falar baixo com o cônjuge ou irmãos mais velhos e não interromper seu filho são as melhores formas de garantir que ele possa continuar a formar um ser humano internamente. Procure não o forçar a trabalhar em grupo. Durante os primeiros seis anos isso pode ser chato. Trabalhar individualmente não o fará mais egoísta - ao contrário, o ajudará a se tornar um pequeno ser humano completo e que, portanto, poderá doar-se com mais vontade mais tarde.

  •  Sublimação do instinto de possessividade;
   É diferente gostar dos objetos e querer tê-los só para si. Admirar objetos, cuidar deles e querê-los em ordem e bom estado é natural da criança. Recusar-se a dividir, ou amar os objetos mais do que os trabalhos que se pode realizar com eles não são atitudes naturais nem comuns e em geral tratam-se de comportamentos incentivados por aqueles que circundam a criança. Objetos não devem ser queridos por si, mas pelo que permitem realizar - mesmo no caso de uma obra de arte, não deve ser ela o mais importante, mas a beleza e o aprendizado que transmite. Ajudamos a criança com isso quando não damos valor excessivo aos objetos e enfatizamos mais as vivências do que as posses no dia a dia. Criar plantas e animais, assim como dividir brinquedos com irmãos e amigos também ajuda.

  •  Poder de agir por escolha;
   A criança, quando nasce, age por princípios naturais de desenvolvimento e por tendências de comportamento inatas. Só com o tempo é que consegue desenvolver a capacidade de agir por escolha. O desenvolvimento desta habilidade é natural, e tende a acontecer mesmo sem nossa ajuda. Podemos ajudar, porém, com o jogo do silêncio e várias outras atividades das quais a criança goste e nas quais o objetivo principal seja conter um determinado tipo de comportamento. Somente aprendendo a conter um comportamento a criança (e mesmo o adulto) aprende a agir por escolha e não por vontade inconsciente. Estas atividades, no entanto, precisam ser feitas de forma agradável, mesmo divertida, e nunca violentando a liberdade da criança.

  •  Obediência;
   Parece contraditório defender a liberdade da criança e ao mesmo tempo explicar porque a obediência é natural. Mas não há nenhuma contradição. Primeiro, porque se é natural, faz parte de sua liberdade e, segundo, porque não falamos de uma obediência cega e despropositada. A obediência é um desenvolvimento importante a adorado pela criança porque ela percebe - embora inconscientemente - que é capaz de determinar seus atos e de agir em consonância mesmo com a vontade de outra pessoa, criando assim o princípio do sentimento de comunidade dentro de si, ao mesmo tempo que aumenta seu poder de agir por escolha. Não ajudamos a criança lhe dando todo tipo de ordens o tempo todo, isso nunca deve ser um hábito. Mas pedir favores de vez em quando, determinar rotinas e brincar de desafiar seu filho a fazer algumas coisas - como brincadeiras, jogos, e não ordens com desobediência sujeita a punições - podem ser excelentes maneiras de incentivá-lo a desenvolver suas capacidades.

  •  Independência e iniciativa;
   Se você segue o Lar Montessori há algum tempo, ou se vem criando seu filho com liberdade - conhecendo ou não os princípios montessorianos - sabe que independência e iniciativa são evidências de uma criança que vem se desenvolvendo com tranquilidade e respeito. Não há uma forma só de incentivar isso, mas tudo o que publicamos no Lar ajudará com essa parte. O ambiente preparado, a liberdade e o respeito são as melhores formas de permitir à criança desenvolver a liberdade e a iniciativa. Eles gostam de descobrir como fazer, e gostam muito de fazer. Tudo o que nos cabe é ajudar com tudo o que pudermos.

  •  Auto-disciplina espontânea;
   Porque a criança desenvolve as capacidades latentes e inatas de obediência, amor ao silêncio, ao trabalho, à ordem, ação por escolha, independência e iniciativa, é claro como água que o primeiro resultado é a auto-disciplina espontânea. Para ajudar nesta etapa do desenvolvimento, é muito bom que desenvolvamos uma rotina fácil, leve e repetida, que consigamos lidar bem com a autoridade e que haja liberdade e respeito ao tempo e às preferências da criança. São assuntos complexos, já abordados no Lar, mas que exigem mesmo um longo período de tentativas. Como a auto-disciplina é um dos dois maiores resultados da recuperação do equilíbrio natural da criança, ela depende de todo o resto para acontecer. Atente para o resto, e ela, como todas as características, surgirá naturalmente.

  •  Alegria.
   Chegamos ao final, nada surpreendente, da nossa lista. Este é o ponto culminante de um desenvolvimento saudável. A cultura ocidental por vezes nos faz achar que o sofrimento, a dor e o mal estar emocional e psicológico são necessários. Não são. A cultura oriental, com a qual Montessori conviveu durante dois dos mais importantes anos de sua vida, nos ensina que os acontecimentos são necessários, mas que sofrer ou não por eles depende da maturidade psicológico-emocional daqueles envolvidos nos acontecimentos. A alegria não vem da ausência de acontecimentos desagradáveis - eles existem. Vem, antes, da capacidade humana de agir por escolha, de conseguir sublimar o instinto de possessividade e de ser alegre, por causa e apesar de tudo.
   Por sorte, no entanto, acontecem mais coisas boas que coisas ruins, e na maior parte do tempo a criança não tem nenhum motivo para ficar triste ou para aprender a lidar com acontecimentos desagradáveis. Na maior parte do tempo, em liberdade e em um ambiente preparado, a criança tem tudo que seu corpo e sua psique pedem, tudo o que é necessário para desenvolver-se física, psicológica e emocionalmente e, por isso, é contente, sente-se satisfeita consigo e com o mundo e em geral sorri bastante. A alegria de uma criança que passou pelo processo de recuperar seu equilíbrio natural é radiante, mas nem por isso é escandalosa. Percebemos essa alegria na tranquilidade, no bem estar ameno e nas pequenas e suaves comemorações a cada desafio que consegue superar.

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Será fantástico saber como estão sendo as coisas na sua casa e saber a sua opinião sobre o processo que comentamos aqui. O que você achou da mudança de nome que nós sugerimos? Quais dessas características são mais marcantes no seu filho? Como você lida com situações nas quais seu filho precisa ficar algum tempo em ambientes que não são preparados para ele? Quando falar das crianças, por favor, nos conte a idade delas, para sabermos sobre quem estamos conversando!
Um grande abraço!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Dia das Crianças, não dos produtos

"Gosto muito do pôr do sol.
Venha, vamos ver um pôr do sol".
(Antoine de Saint Exupéry, em O Pequeno Príncipe)

   Hoje, quando estava almoçando, liguei a televisão no jornal da tarde. O âncora dizia, enquanto víamos imagens de lojas e ruas: "E a 25 de Março está vazia! Para quem quer comprar o presente de dia das crianças, ainda dá tempo!". 25 de Março é o principal centro de comércio a varejo em São Paulo, e é famosa por seus descontos fantásticos em produtos de qualidade baixa ou média.

   Na hora, veio-me à mente uma fala que havia lido no Facebook, dias antes: Neste 12 de outubro, faça com que o dia seja das crianças, e não dos produtos. Lembrei-me também do livro que já mencionei aqui em um artigo anterior: "The World Needs Your Kid" e do blog sobre miniamlismo da Jéssica, o Minimal Student.

   Crianças não ligam para brinquedos. Os pais que já conhecem e praticam Montessori há algum tempo sabem disso. Elas ligam para o prazer advindo do aprendizado que a experiência com o brinquedo proporciona. Então, não é o brinquedo que importa, são três outras coisas:
  1. o prazer
  2. o aprendizado
  3. a experiência
   Como o prazer certamente advirá do aprendizado e o aprendizado só pode surgir a partir da experiência, vamos pensar em experiências. Sabemos que a criança pequena gosta de usar os sentidos e adora ter trabalho. No dia das crianças, podemos proporcionar isso a ela de várias maneiras.

   Uma ideia é organizar um passeio em família para um parque, praça, ou oficina infantil. Em um parque, a criança pode explorar todo o entorno natural que lhe faz tão bem. Pode aprender as texturas das folhas, troncos, da grama e da terra. Ela pode sentir o cheiro das flores, pode ver (e pegar!) insetos, lagartas, minhocas... Cuidado com aranhas, taturanas e animais com ferrão, mas de resto, toda experiência sensorial é científica!

   Passear pelo parque pode proporcionar para ela a oportunidade de conhecer plantas diferentes, e lembre-se de que crianças adoram categorizar. Separar as coisas em flores, arbustos, árvores e ervas-daninha pode ser um jeito de ajudar seu filho a organizar o mundo. Além disso, claro, vale comer uns sanduíches feitos em casa com suco, água, leite ou chá e brincar de roda-roda, pular corda, esconde-esconde, pega-pega, rolar na grama e todas as outras brincadeiras que você e seu filho conhecem bem!

   A praça é um passeio menor, mas muitas vezes é tão bom quanto o parque. Aqui em São Paulo sei que há várias praças com parques de diversão e outras de beleza natural que vale a pena. Conheço uma chamada Praça do Por do Sol, que fica em um local bem alto da cidade e que permite ver o por do sol de um ponto de vista fantástico. Além disso, tem muita grama, árvores, espaços amplos para brincadeiras e conversas. Ir a uma praça pode ser mais fácil para uma família em que todo mundo trabalhe ou para uma criança que não goste de ficar muito tempo no carro, até chegar em um parque que fique longe.

   As oficinas infantis acontecem em várias cidades do Brasil durante o dia 12 de outubro e o fim de semana que o segue. Nem todas são legais. Algumas funcionam com base em competições, outras têm como tema personagens de desenho animado. Mas há um punhado que oferece oportunidades incríveis para as crianças: utilizar materiais recicláveis, superar obstáculos físicos como montanhas de almofadas ou ladeiras de borracha, conviver com crianças de outras classes sociais. Passar um dia em uma oficina assim pode ser muito, muito mais divertido do que ganhar um carrinho, uma bola ou um quebra-cabeça.

   Em alguns casos, porém, pode estar chovendo, pode estar trânsito, e um passeio pode ser bem complicado. Aí vale a pena dar o presente? Não. Não, por dois motivos: primeiro, as coisas são mais caras no dia das crianças, não compensa. E em segundo lugar, seu filho não pode associar seu afeto com objetos, com presentes. Seu afeto tem de estar nas suas palavras, nos abraços, no carinho que você pode e deve oferecer todos os dias.

   Se não houver nenhum passeio para fazer, não tem problema. Faça uma atividade sensorial, faça um pão e peça ajuda para fazer a massa, faça uma salada de frutas e precise de ajuda para cortar as frutas, uma faxina de mentira com ajuda para varrer um pedaço da sala ou do quintal. Se estiver frio, faça tudo de dentro de casa, e se estiver quente, plante uma flor no quintal, use a varanda para montar um brinquedo com tecido ou papel (e o principal não é o brinquedo, mas montar o brinquedo).

   Se você faz parte de uma família que aprecia uma boa educação social, também há vários locais que propiciam o contato entre diversas classes sociais, organizações que dão espaço para algumas crianças darem brinquedos para outras, e você pode ensinar sua criança a dar, sem esperar nada em troca.

   Finalmente, o que importa é fazer deste dia um Dia das Crianças, no qual seus pequenos sejam prioridades completas, em primeiro, segundo e terceiro plano. Dia 12 de outubro não é dia de dar presentes para seu filho, mas é dia de despertar o prazer advindo do aprendizado que surge a partir da experiência.

   Um abraço e feliz Dia das Crianças!