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domingo, 30 de setembro de 2012

Minimalismo e Montessori

Há alguns dias publiquei no Diário Minimalista um pequeno texto sobre minimalismo e Montessori. Agradou a alguns leitores que chegaram lá por interesse em Montessori, e agradou a outros que chegaram por interesse em minimalismo. Pelo resultado com os leitores montessorianos, achei que seria uma boa ideia colocar o texto aqui também! Espero que lhes seja interessante!

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   Eu já disse em um post anterior que meu maior foco de estudo e trabalho é o Método Montessori. Quando comecei a ler sobre minimalismo, pensei: puxa, se existisse um método de ensino minimalista ia ser incrível! Já pensou? O professor só falar o suficiente, não atrapalhar o raciocínio dos alunos com muitas palavras, levar todas as imagens necessárias, mas sem uma overdose de ilustrações que possa confundir. Uma sala com um mínimo de carteiras, grandes e bonitas, e com muito espaço livre, num ambiente agradável aos olhos, leve e em que tudo fosse útil... Seria incrível, não?

   No parágrafo acima, eu acabei de descrever o método Montessori. Em Montessori, o professor fala muito pouco, e somente o necessário. Todas as palavras que ele pronuncia são úteis e detalhes não saem de sua boca, pois percebemos que detalhes confundem. Poucas e boas palavras realmente ensinam. Existem muitos materiais, muitos mesmo, mais de uma centena. Mas todos são belos, de cores suaves e, mais importante, todos ensinam.

Sala da escola montessoriana Tip-Toe
   A sala montessoriana é grande sempre. Mas há poucas mesas e muito chão livre. Neste chão os alunos estendem tapetes e trabalham com os materiais em quase silêncio e com todo o tempo que precisarem. Não há figuras de desenhos animados ou quadrinhos nas paredes, e em vez delas encontramos belíssimas reproduções de quadros importantes da nossa cultura colocados com um bom espaço entre um e outro, para que os olhos da criança não fiquem nunca cansados.

   Há amplas janelas em qualquer ambiente montessoriano. Deve haver muita luz, muito ar fresco. As crianças em um ambiente assim são deixadas em liberdade e por isso são tranquilas, alegres, sorriem bastante, sabem conversar, são muito educadas e até aprendem a ler mais cedo!

Quarto montessoriano
   Engana-se, no entanto, quem acha que tudo isso é feito para que as crianças aprendam mais e mais cedo. Não. É justamente porque elas gostam de aprender deste jeito que nós montamos a sala desta forma e nos comportamos assim. Elas nos mostram como aprendem melhor, e nós modificamos a sala e o comportamento para satisfazer a natureza delas. Elas agem, nós observamos. Elas falam, nós escutamos. Elas trabalham (bom, nós também, e muito, mas principalmente) nós organizamos o ambiente de trabalho delas.

   Talvez por ter sido educado em uma escola Montessori e ter feito deste método o foco da minha vida, eu tenha achado tão simples e agradável o estilo de vida minimalista. Eu já conhecia o método de ensino minimalista, só não sabia que o nome dele começava justamente com m.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Normalização I: O Respeito pela Criança

Este texto faz parte de uma série de dois artigos sobre normalização. Este é sobre o respeito à criança. O próximo será sobre a normalização em si, que já foi chamada de milagre da educação e conversão natural da criança, ambas denominações errôneas para um processo que nada mais é além da recuperação, por parte da criança, de tendências que lhe são naturais. Seja bem vindo, e antes de ler este texto, leia o Manual da Criança Montessori, disponível aqui no Lar!

   "Montessori segue os caminhos da Natureza", disse E.M. Standing, explicando o ponto de apoio mais importante de todo o método Montessori. Temos sempre de lembrar que a Natureza sabe o que faz, e que os maiores milagres só podem ser operados pela natureza sendo deixada em liberdade para agir dentro e fora da criança. A natureza aprisionada perde sua magia - vemos isso claramente nos pássaros que nascem livres e são engaiolados, nos peixes capturados do mar, nas meninas e meninos que são colocados, contra a vontade, em clausuras e mosteiros.

Nasce daí uma obediência que pode ser interpretada como virtude, mas também nasce daí a diminuição da vontade de viver, e os seres vivos aprisionados deixam de emanar aquela energia que é tão bela de se ver numa criança livre, em um pássaro em liberdade ou em uma mata virgem: a Natureza livre não recebe esta liberdade de ninguém, ela nasce assim e só com esta liberdade mantida é que pode operar as maiores maravilhas do mundo.

A criança nasce livre. Se nós a mantivermos livre, ela, como todos os outros seres da natureza, agirá conforme sua capacidade e exigirá do mundo conforme sua necessidade. Se for deixada em liberdade, não irá querer mais do que precisa, não irá rejeitar o pouco de que precisa, irá se comportar como seu ambiente natural permite: com amor ao silêncio, amor ao esforço-aprendizado e amor à ordem interna e externa. Estas são as direções inatas da criança que Montessori percebeu por suas observações e que Standing tão sabiamente sumarizou em seu "Maria Montessori: Her Life and Work".

Qualquer pai, mãe, irmão ou professor percebe algumas coisas em crianças muito pequenas: elas gostam de silêncio ou sons bastante suaves, mas o barulho incomoda muito, quase machucando. Gente falando muito alto com elas também é ruim, assim como pessoas muito bem intencionadas que falam com "voz de bebê", ou pessoas ainda melhor intencionadas que lhes presenteiam com DVDs de programas de televisão, desenhos animados ou programas educativos. Elas gostam de silêncio, músicas baixas, suaves e tranquilas, sons da natureza e a voz humana em volume e quantidade moderada.

Todos nós também sabemos que crianças são curiosas. É por isso que não deixamos medicamentos ao alcance de crianças, que tomamos cuidado com brinquedos com peças pequenas que podem ser engolidas, que procuramos esconder todas as tomadas, colocar uma portinha na escada, ficar sempre de olho quando o fogo está aceso, e também é por isso que perdemos a calma com seus "por quês?", "comos?" e "quandos?". Evitamos que coloquem coisas na boca e que coloquem a mão em animais perigosos ou peçonhentos.

Por último, sabemos intuitivamente que as crianças amam a ordem, embora nem sempre respeitemos isso. Sabemos que gostam de roupas claras e suaves, que seus quartos lhes agradam mais quando tem poucas coisas, que elas não precisam de muitos brinquedos, de muitos objetos ou de muitos materiais, que lhes basta muito pouco para se sentirem realmente bem e que tudo de que necessitam é que esse pouco seja muito bem escolhido, muito limpo e muito bem organizado. Nada precisa ser muito, ser grande ou ser caro, basta que seja muito bem cuidado e organizadinho.

   Acontece, porém, que como não respeitamos sempre essas necessidades da criança, acabamos por reprimir (e eu não gosto muito dessa palavra, mas é isso) a natureza dela e forçamo-la a adotar posturas artificiais diante do mundo. É por isso que crianças que nasceram amando o silêncio acabam gostando de programas de televisão e desenhos animados irrealistas e violentos, é por isso que os pequenos bebês curiosos aos poucos se tornam cansados e apáticos diante do mundo e crescem como alunos que perguntam se "vai cair na prova" em vez de perguntar "Por quê?" e é também por isso que aquelas criancinhas que adoravam tudo no seu lugar acabam por largar tudo no meio do caminho e por jogar tudo no chão em sinal de protesto.

O respeito à natureza da criança vem de duas formas bastante simples, na verdade, e que englobam todas as outras formas menores: respeito pelo espaço e pelo tempo.

   O respeito pelo espaço da criança é manifestado pela escolha sábia daquilo que será útil. Não é útil comprar dez brinquedos antes de a criança nascer. Nem é útil que ela tenha vários brinquedos de um mesmo tipo ou qualquer coisa assim. Este tipo de presente alimenta uma forma nada natural de vontade de possuir.

É útil dar à criança aquilo que suas atividades ou manifestações pedem. Quando ela começa a querer ouvir sons mais de perto ou a provocar sons com o corpo e com o que está em volta, é interessante lhe dar pequenos instrumentos, chocalhos, o violão da família, ou mesmo permitir que batuque em potes, móveis da casa e lhe oferecer músicas clássicas, instrumentais e sons da natureza. Da mesma forma podemos estimular todos os outros sentidos.

Outro ponto muito importante para o respeito ao espaço é organizar a casa. Casas com crianças precisam ser casas arrumadas. Eu sei que é difícil, mas é assim que tem que ser. É da sua capacidade de organizar o caos que advirá a capacidade da criança de manter tudo organizado. A ordem lhe agrada, e agrada muito, mas ela só sabe que gosta de ver tudo organizado, não nasce sabendo organizar. Então, precisamos guardar as coisas que ela desarruma durante alguns anos, depois, aos poucos, podemos ensiná-la a guardar também. Tu-do or-ga-ni-za-di-nho!

Para tudo ficar em ordem e essa ordem poder ser percebida, não pode haver muita coisa. Um quarto de criança montessoriano é um quarto clean, minimalista (aprendi a palavra esses dias e adorei), quase vazio. Tem o necessário, e o necessário sempre é pouco.

O último ponto muito importante de respeito ao espaço da criança é que a casa inteira deve ser o ambiente dela (menos a cozinha, porque no começo é um ambiente perigoso demais. Aos poucos esse pode ser explorando junto com você e aos dois anos o acesso já pode ser livre). Não deve haver um quarto completamente adaptado ao seu tamanho e todos os outros com coisas grandes e inalcançáveis. Se você não conseguiu adaptar a casa toda ainda, feche as portas ou coloque grades nos ambientes não adaptados, assim você lembra que precisa adaptar o mais rápido possível e ela não se frustra por ser mais baixa que todo o resto do mundo.


   O respeito pelo tempo da criança é ainda mais simples: basta compreender que o ritmo dela é completamente diferente do seu. Algumas coisas, para você, são rotineiras e desimportantes. Para ela, nada é um hábito. Ela acabou de chegar no mundo, ainda não sabe como as coisas funcionam. Fechar o zíper é uma experiência sensorial, amarrar o tênis é um desafio motor, subir em uma escadinha é uma aventura cheia de suspense.

Dizer para ela ir mais rápido não adianta, porque não faz o menor sentido. Ela não entende porque alguma coisa é mais importante do que aquilo que ela está fazendo no momento. E na verdade ela está certa, nada é mais importante. Ela está construindo um ser humano lá dentro dela. Está desenvolvendo as habilidades necessárias para a manutenção da civilização. Ela é responsável pelo trabalho mais nobre do mundo e deve ser respeitada e admirada por isso. Hierarquicamente, a criança sempre estará acima de nós, porque é ela que nos cria.

Precisamos organizar o nosso tempo para que possamos respeitar o tempo dela. Se sabemos que demora demais para comer, precisamos começar a almoçar mais cedo. Se demora muito para se vestir, teremos de marcar o passeio para mais tarde. Ela vai demorar bastante para muita coisa, quase sempre, e vai querer repetir tudo de que gostar. A repetição é fundamental e agradável para ela. Permita.

Respeitar o tempo não significa desistir da rotina. Veja o texto sobre rotina e ritual para entender melhor esse assunto, mas saiba desde já: estabelecer um horário para dormir é bom, mas isso não deve ser forçado demais. A criança pode indicar devagar qual a hora mais apropriada para seu sono, ou você pode induzir devagar um horário necessário para a família. A mesma coisa para comer. Pode haver horários para as refeições, mas eles precisam respeitar o apetite dos pequenos. 

  Tenho certeza de que fazendo tudo isso você estará respeitando a natureza da criança que vive com você. E uma natureza respeitada leva inevitavelmente a uma vida mais prazerosa, mais cheia de energia, de sorrisos, de alegrias e de contentamento. Haverá episódios de manha, de rebeldia. Analise essas situações, tente entender porque elas aconteceram. Não se vingue com broncas fortes demais ou palmadas. Entre vocês dois, você tem de ser o ser humano que sabe mais e o mais maduro. Ela está aprendendo, e está criando, lá nas profundezas de sua natureza, um próximo ser humano, sábio e maduro também.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Manual do Proprietário de uma Criança Montessori


Texto de Donna Bryant Goertz, disponível em http://mariamontessori.com/mm/?p=1674
Tradução de Gabriel Merched Salomão distribuída com autorização da autora


   Queridos pais,

   Eu quero ser como vocês. Eu quero ser exatamente como vocês, mas quero me tornar como vocês do meu jeito, no meu tempo, pelos meus esforços. Quero assistir a vocês e imitar vocês. Eu não quero ouvir vocês, a não ser por umas poucas palavras de cada vez - a menos que vocês não saibam que eu estou ouvindo. Eu quero trabalho, quero realmente me esforçar com algo muito difícil, algo que eu não consiga fazer imediatamente. Eu quero que vocês deixem o caminho livre para os meus esforços, e quero que me dêem os materiais e ferramentas necessárias para que o sucesso seja possível depois das dificuldades iniciais. Eu quero que vocês me observem e vejam se eu preciso de uma ferramenta melhor, um instrumento mais do meu tamanho, uma escada mais alta e mais segura, uma mesinha mais baixa, uma caixa que eu mesmo possa abrir, uma estante mais baixa, ou uma demonstração mais clara de algum processo. Eu não quero que vocês façam para mim, ou me apressem, sintam pena ou me parabenizem. Só fiquem calmos e me mostrem como fazer as coisas devagar, muito devagar.

   Eu vou querer fazer um trabalho todinho de uma vez e sozinho porque eu vejo vocês fazendo, mas isso não funciona para mim. Sejam firmes e coloquem limites para mim nessa hora. Eu preciso que vocês me dêem pequenas partes do trabalho inteiro e me deixem repetir de novo e de novo, até que eu faça tudo perfeitamente. Vocês dividem o trabalho em partes que serão muito difíceis, mas possíveis de fazer com bastante esforço, com muitas repetições e com muita concentração.

   Eu quero pensar como vocês, comportar-me como vocês, e ter os mesmos valores que vocês. Eu quero conseguir tudo isso pelo meu trabalho, imitando vocês. Falem devagar. Usem poucas e sábias palavras; Movimentem-se devagar; Façam as coisas em câmera lenta para que eu possa absorvê-las e imitá-las.
Se vocês confiarem em mim e me respeitarem, preparando meu ambiente doméstico e me dando liberdade dentro dele, eu vou me disciplinar e cooperar com vocês mais pronta e frequentemente. Quanto mais vocês se disciplinarem, mais eu vou me disciplinar. Quanto mais vocês obedecerem as leis do meu desenvolvimento, mais eu obedecerei vocês.

   Nós temos tanta sorte, eu e vocês, que dentro de mim haja um plano secreto para o meu jeito de ser como vocês. Eu sou guiado pelo meu plano secreto. Eu sou feliz e estou seguro o seguindo. É irresistível para mim. Se vocês interferirem com o trabalho de me revelar de acordo com meu plano secreto e tentarem me forçar a ser como vocês do jeito de vocês, no tempo de vocês e pelo esforço de vocês, eu vou esquecer de trabalhar no meu plano secreto e vou começar a lutar contra vocês. Eu decidirei levantar guerra contra vocês e contra tudo o que vocês defendem. É minha natureza. É meu jeito de me proteger. Podem chamar isso de integridade.

   Dependendo da minha personalidade, eu promoverei uma guerra mais aberta ou mais encobertamente. Eu brigarei mais ativa ou passivamente. Uma quantidade imensa de minha energia, do meu talento e inteligência será desperdiçada. Vocês vão ganhar no final, provavelmente, mas eu serei só uma versão mais fraca, uma substituição pobre, um molde tosco daquilo que eu sou capaz de ser, e vocês vão ficar exaustos. Por favor, aliviem a tensão para todos nós preparando o ambiente em casa para que eu possa executar meu trabalho de criar um ser humano e vocês possam se manter no trabalho de educar um. Eu farei o que faço melhor e vocês farão o que fazem melhor.

   Eu sou capaz de ser o melhor exemplo de suas melhores qualidades e valores expressos do meu jeitinho. Se vocês prepararem a casa cuidadosa e completamente para mim, mantiverem meus materiais em ordem e em bom estado, colocarem limites claros e firmes, derem-me períodos longos e lentos para trabalhar no meu plano secreto, eu farei o trabalho de desenvolver um novo ser humano - eu! Eu mencionei que preciso dos materiais em todos os ambientes da casa? Eu preciso de materias disponíveis para acesso rápido e fácil, sempre que eu estiver em casa e onde quer que vocês estejam. Eu preciso ter a opção de trabalhar e brincar perto de vocês. Na maior parte do tempo, eu preciso fazer as atividades perto da estante ao qual elas pertencem para que eu crie o hábito de guardá-las depois de usar.

   Meu plano secreto para me desenvolvier é executado totalmente pela mão - mãos, digo, as minhas duas, para ser exato. Eu sou um bom artista, um excelente artesão e preciso das melhores ferramentas e materiais. Não me dê coisas inúteis e em excesso, só uns bons materiais que sejam completos e estejam em bom estado. O excesso é pior que desnecessário; é perturbador. Atrapalha meu processo criativo. Me deixa irritado e eu coopero menos com vocês. Eu sei que é difícil de acreditar que por meio das atividades que eu escolho e executo independentemente e em estado de profunda concentração eu esteja desenvolvendo meu caráter, mas é verdade. Eu não posso fazer um bom caráter com um excesso de coisas inúteis e no meio da bagunça.

   Minha casa é meu estúdio e meu ateliê, então por favor, certifiquem-se de que ele seja calmo e pacífico. Coloquem músicas leves e tranquilas para tocar enquanto eu estiver acordado. Assistam televisão só depois que eu estiver dormindo. Enquanto estou acordado, faço todo o barulho de que preciso. Ah, e eu preciso que tudo fique em ordem. Eu não posso dar o melhor de mim na bagunça. Eu não sei como ordenar as coisas sozinho, mas eu preciso da ordem, então eu preciso que vocês arrumem tudo para mim pelo menos três vezes por dia. Se vocês ordenarem as coisas para mim de um jeito prático e que seja esteticamente prazeroso e faça sentido para o meu raciocínio lógico, eu vou, devagarinho, imitar vocês mais e mais.

   Em algum momento, vocês poderão me mandar colocar as coisas no lugar sozinho, quando eu tiver uns seis anos, desde que vocês se lembrem de checar tudo comigo até os nove anos. Eu não consigo lidar com o acúmulo de um dia inteiro de coisas para guardar, e muito menos o de uma semana inteira. Eu certamente nunca serei capaz de lidar com um mês de bagunça. Se vocês se distrairem e esquecerem de me ajudar a guardar tudo durante o dia e a bagunça se acumular, vocês vão ter que guardar tudo à noite.

   Eu odeio ser tão exigente, mas eu preciso ter todos os meus objetos organizados e dispostos em conjuntos completos que eu possa alcançar, de forma que eu possa pegá-los sozinho. Se eu tiver de pedir para vocês toda vez que precisar de alguma coisa, eu vou começar a me sentir um capitão, um general ou um inválido chorão. Parem e pensem, eu realmente poderia assumir um ou outro desses papéis. Nenhum de nós deseja isso. Eu preciso de independência como eu preciso de oxigênio. Ela me faz apresentar o melhor de mim. O tempo que vocês gastam organizando meu ambiente será o tempo que vocês economizarão não tendo que lidar com meu lado petulante, rebelde e teimoso.

   A televisão é uma grande interrupção no meu desenvolvimento. Desculpe! Eu sei que vocês não querem ouvir isso: eu preciso de muitas atividades manuais e preciso de muito tempo de processamento. A TV me distrai das atividades mais importantes e enche minha cabeça com mais do que eu tenho tempo para processar. Leiam para mim todos os dias, porque a leitura vai devagar, e me dá tempo para processar junto. A TV me amontoa com mais do que eu sei usar, então ou eu desligo ou fico frenético. Eu sei que vocês podem achar que alguns programas são bons para mim, e vocês podem achar que merecem a folga que a TV dá para vocês, mas nós todos pagamos um preço alto para cada meia hora que eu assistir.

   Eu não resisto à TV, mas tudo bem, porque qualquer criança de três a seis anos tem pais, e é para isso que os pais servem. A TV me deixa distraido, irritado, e me faz não cooperar com vocês. Quanto mais eu assistir, mais eu quero assistir, e aí surgem problemas entre nós. Se vocês não conseguem dizer não para o hábito de ver TV agora, onde está meu exemplo para dizer não para outros maus hábitos mais tarde? Além disso, quanto mais eu vejo TV, menos eu quero ser como vocês. Lembrem-se, eu imito o que assisto. Ah sim, cuidado também com os jogos de videogame e computador pelos quais eu vou implorar e que todos os meus amigos têm. Sei que vocês conseguem!

   Geralmente, eu vou estar tão concentrado nos meus trabalhos e brincadeiras que não vou ouvir vocês quando falarem comigo. Não piorem as coisas falando de longe ou repetindo o que vocês disseram. Abaixem-se até o nível dos meus olhos, pertinho do meu rosto, consigam minha atenção e olhem nos meus olhos antes de falar. Então, façam das suas palavras poucas, firmes e respeitáveis. Vocês vão economizar muito sofrimento desnecessário se lembrarem de fazer assim. Eu sei que não vai ser fácil lembrar, mas se vocês se esforçarem bastante, podem fazer disso um hábito. Afinal, se vocês não fizerem o que devem, como podem esperar que eu faça o que devo?

   Se você não tiverem tempo, energia ou, odeio dizer isso, auto-disciplina para seguir aquilo que vocês dizem, não digam. Ameaças vãs e promessas vazias me fazem desprezar vocês. Vocês ficam parecendo bobos, arbitrários e fracos. Eu sei que eu ajo como se quisesse conduzir o universo sozinho, mas é só bravata. Eu realmente preciso de pais para conduzirem meu mundo. Quando eu não posso confiar que vocês querem dizer o que dizem, eu não posso acreditar em vocês. Isso me faz sentir inseguro e eu chego a alguns extremos. É assustador porque eu amo vocês demais. Eu preciso respeitar vocês e acreditar que vocês querem dizer o que dizem. Vocês são a parte mais importante do meu ambiente em casa.

   Vocês se alegrarão de saber que parte do meu plano secreto pede que eu ajude com a casa e o jardim. Não, não pode ser quando vocês quiserem, quando vocês tiverem tempo ou estiverem com vontade. Tem que ser quando eu me interessar. Desculpe, não dá para negociar isso. Afinal, sou eu quem está criando um ser humano aqui. Vocês só estão educando um. Bom, eu acho que não serei de nenhuma ajuda, na verdade, não imediatamente ou diretamente. Vai ser uma complicação. Eu preciso do equipamento no tamanho certo, de demonstrações cuidadosas e de muito tempo e paciência.

   Assim que eu tiver dominado uma habilidade, e me tornar capaz de realmente ajudar, vou cansar e escolher não fazer aquilo de novo. Aí eu vou querer aprender algo novo, que exija ainda mais habilidade e desenvoltura e vocês vão ter de começar tudo de novo. Isso vai acontecer mais ou menos uma vez por semana pelos próximos seis anos e vai ocupar bastante do seu tempo tão valioso e escasso. No longo prazo, no entanto, vai ser de grande ajuda, porque eu vou me sentir tão envolvido com a casa e com a família que serei muito mais razoável e cooperativo quanto aos nossos valores e regras. Eu também serei tão capaz, independente e auto-suficiente quando eu tiver uns nove anos que é bastante razoável esperar que eu faça minha parte na casa e no jardim. Eu terei desenvolvido obediência.

   Eu sei que minhas necessidades são grandes e muitas. Eu sei que estou pedindo muito de vocês, mas vocês são tudo que eu tenho de verdade. Eu amo vocês e eu sei que vocês me amam além da razão e dos limites. Se eu não puder contar com vocês, com quem eu contarei? Mas não vamos fantasiar. Não precisa ser perfeito. Eu sou forte e resistente. Eu sobreviverei e farei o melhor. Só achei que vocês poderiam querer ter o capítulo sobre Cuidados Básicos com o Ambiente Doméstico do Manual do Proprietário sobre uma Criança Montessori. Vocês podem fazer os próximos três anos serem muito mais divertidos para nós todos se cuidarem de mim conforme minhas necessidades. Ei, nós podemos combinar que vamos satisfazer 50% das minhas necessidades? Ok, Ok, 25% e não se fala mais nisso.

   Amor, abraços e beijos,
   Seu filho de três a seis anos.

   PS: Eu sei que tenho muita sorte. Não são muitos os filhos cujos pais vão realmente ouvir e atentar para suas necessidades em vez de ceder às teimosias e chororôs. Talvez eles temam que seus filhos deixem de amá-los. Talvez temam que seus filhos não sejam populares. Eu vou guardar isso para o Capítulo Seis.
   Quanto mais eu assistir TV, mais eu vou reclamar por tédio, porque aos poucos eu vou perder minha tendência natural a seguir meus Períodos Sensíveis - sabem, aquela atração a certas atividades durante períodos determinados do desenvolvimento. Sem a interferência da TV, uma incansável sensação de insatisfação criativa me leva a explorar o ambiente, focar minha atenção em uma atividade, concentrar-me nela, e repeti-la. Sob a influência da TV, a mesma sensação incansável se torna um monstro de cara feia chamado “tédio”, que tiraniza a vocês e a mim, desgasta nossa relação e compromete meu melhor desenvolvimento.


    - Donna Bryant Goertz, fundadora da Austin Montessori School, em Austin, Texas, atua como uma fonte para escolas ao redor do mundo. O livro de Donna, “Children Who are Not Yet Peaceful: Preventing Exclusion in the Early Elementary Classroom” baseia-se em seus trinta anos de experiência guiando uma comunidade de trinta e cinco crianças entre seis e nove anos. Ela recebeu seu diploma de Ensino Básico Montessori da Fondazione Centro Internazionale Studi Montessoriani, em Bérgamo, Itália, e seu diploma de assistente para a infância pelo The Montessori Institute of Denver, no Colorado.